Sobre Bernardo Pereira de Vasconcelos:
Em defesa de um estadista

Bernardo Pereira de Vasconcelos (...), notável figura da Regência e do começo do Segundo Reinado, com destacada atuação no cenário da política de seu tempo, quer na Câmara, quer no Senado, quer nas pastas do Império, da Fazenda e da Justiça, onde deixou marcas salientes (...), jamais foi citado como o autor do projeto sancionado pelo regente Feijó, em 31 de outubro de 1835, e é dado como intransigente inimigo das estradas de ferro, por muitos dos que versaram o assunto.

Cristiano Benedito Ottoni, referindo a má vontade existente, naquela época, contra as estradas de ferro, escreve na página 100 de sua Autobiografia 4[Rio de Janeiro, Tipografia Leuzinger, 1908].

Esta descrença era geral entre os nossos estadistas. Vasconcelos que ainda vivia em 1849, quando se falava do projeto, dizia zombando: — "Construam, os trens carregarão no primeiro dia do mês tudo que há no interior para transportar e ficarão ociosos vinte e nove dias".

Otávio Tarquínio de Sousa, em Bernardo Pereira de Vasconcelos e seu tempo 5[Livraria José Olimpio, Rio de Janeiro, 1937], nada diz de seu biografado como autor do projeto autorizando a construção de estradas de ferro em nosso país e, na página 241, escreve: "O espírito conservador de Vasconcelos se apura cada dia e, forçoso é confessar, sob certos aspectos, inquietadoramente. Assim é que combateu cheio de ardor a concessão de uma estrada de ferro pretendida por Tomas Cochrane, ligando o Rio de Janeiro às capitais de Minas e S. Paulo. Como Thiers, não acreditava em estradas de ferro e estava certo que o capital nelas empregado não teria remuneração, acrescentando que a ferrugem as destruiria..."

Com o desejo de esclarecer este ponto, fazer justiça e ressaltar o valor de quem apresentou à Câmara o projeto autorizando a construção de estradas de ferro no Brasil, manuseei as atas da Câmara daquele tempo e as do Senado, desde 1838, quando Vasconcelos nele ingresou, e nada encontrei justificando o que lhe atribuem.

Na ata da sessão do Senado de 23 de fevereiro de 1843 6[Jornal do Commercio, de 26 de fevereiro de 1843] deparei com a discussão da resolução da Câmara dos Deputados, aprovando o pedido de Tomas Cochrane para o governo subscrever ações da companhia que organizara, para a construção de uma estrada de ferro da Côrte à província de S. Paulo.

Vasconcelos foi contra a aprovação da resolução, não por ser inimigo das estradas de ferro, mas por ser contra o Estado Industrial e para não permitir que o governo subscrevesse ações da companhia. Disse, claramente, porque assim agia, analisou as precárias condições do país e do tesouro e, com razões bem fundamentadas, mostrou os inconvenientes do governo se meter em tal aventura.

O parecer é este:

« A Comissão de Fazenda examinou o projeto de resolução enviado pela Câmara dos Senhores Deputados, autorizando o governo a subscrever pelo valor de duas mil ações, como acionista da companhia organizada por Tomas Cochrane para construir uma estrada de ferro, conforme o decreto de 4 de novembro de 1840 e condições que o acompanham.

A Comissão convencida como está da não realização da empresa projetada, a qual servirá somente para dificultar qualquer melhoramento das estradas já existentes, que porventura se empreenda, e, atendendo aos apuros do tesouro, é de parecer que não seja aprovada a dita resolução.

Paço do Senado, 31 de janeiro de 1843 — VasconcelosAlves Branco. » 7[Impresso dos Senadores, 1843].

Para discutir o assunto, falou em primeiro lugar o sr. Oliveira Mendes:

Entendo, sr. presidente, que a resolução deve ser rejeitada. A idéia de estradas de ferro entre nós é uma daquelas apresentadas por especuladores que nenhuma intenção, nem esperança têm de realizá-las. Ainda não temos estradas nem de barro, como queremos pois fazer uma de ferro e logo em tão grande extensão!

Para passar por ela o quê? Quatro bestas carregadas de carvão em um ou outro dia?

Senhores, ainda não conhecemos o nosso país e já queremos arremedar nações que existem há uma imensidade de séculos e que não sabem o que fazer do dinheiro. Não temos um real; temos apenas quatro milhões de almas (se é que temos), entretanto queremos ter todos os estabelecimentos que têm essas grandes nações. Como isto é possível?

Voto pois contra a resolução, desde já, e assim hei de votar sempre (...) o empresário quer que o governo entre com 2.000 ações. Ora, nós não temos meios para acudir às despesas de primeira necessidade, estamos vivendo a crédito e havemos de fazer com que o governo seja sócio desta companhia, onerando a nação de dívidas!

Levantou-se então Bernardo Pereira de Vasconcelos, pronunciando longo discurso, do qual são transcitos alguns trechos, que demonstram não ser Vasconcelos inimigo das estradas de ferro.

Alguns nobres senadores que se têm pronunciado a favor do projeto, encarecem muito a vantagem das estradas de ferro. Em geral sou desta opinião, mas a questão não é se são vantajosas ou não as estradas de ferro, se são um meio de comunicação mais pronto e mais seguro; a questão é se nas nossas circunstâncias podemos ter uma estrada de ferro da importância da que trata o projeto. Tem-se dito: são muito convenientes, são um meio de comunicar as províncias com toda a celeridade possível; não desconheço isso, mas uma empresa destas irá ou não causar prejuízos?

Em seu discurso expõe bem a questão, focaliza a atenção para a falta de recursos do tesouro, para o custo exagerado destas estradas, para a pobreza das terras a atravessar, para a falta de mercadorias a transportar e cita a frase do barão Charles Dupin, dita no Parlamento francês: — com manifesto equívo têm sido estas estradas denominadas de ferro; seu nome próprio é "estradas de ouro" porque com sua construção gasta-se tanto dinheiro como se fossem calçadas de ouro — e prossegue:

Diz-se que é um meio de promover a riqueza pública. Empregar capitais que não produzem um rendimento proporcional é promover a riqueza pública? É para mim coisa nova (...) lembrem-se que os norte-americanos estão hoje muito comedidos, porque têm reconhecido que estas estradas são muito úteis, sim, mas quando são feitas sem circunspecção causam gravíssimos prejuízos. Ora, nas circunstâncias em que nos vemos, segundo disse o nobre senador, quando não temos meios para fazer face às despesas públicas, iremos contribuir com duas mil ações para esta companhia? Iremos excitar o público a empregar seus capitais em uma obra ruinosa aos acionistas? Teremos ao menos o prazer de justificar-nos com a excelência das estradas de ferro? (...) o que digo contra o projeto é que não temos produtos para conduzir por estas estradas, que se a estabelecerem ficará ociosa onze meses no ano e talvez mesmo a ferrugem a destrua; que em outras circunstâncias uma despesa tal não seria conveniente; nas circunstâncias atuais, ameaçados de uma terrível decadência de produção do estado, como poderíamos decretá-la? Voto contra.

Na sessão seguinte continuou Vasconcelos:

Incumbia-me como membro da Comissão da Fazenda defender o seu parecer, rejeitando a resolução da Câmara dos Deputados (...)

Eu me pronunciei na sessão passada sobre as estradas de ferro em geral, mas reconhecendo que esta regra geral admite exceções, julguei que uma delas é a estrada de que se trata: 1º porque são insuficientes os capitais destinados à sua construção; 2º porque quando se construísse não havia de dar um interesse tal que indenizasse os acionistas de um interesse que poderiam ter em outro qualquer emprego que dessem a seus capitais. Em 3º lugar porque a nação não podia concorrer com 2.000 contos para a estrada (...). E poderia, disse eu, o tesouro fazer frente à despesa que vai decretar? O tesouro que reconhece um deficit igual ou superior a dois terços da receita do Estado? (...) o que eu asseverei foi que essa estrada não valia o sacrifício que se pedia ao tesouro (...). Suponhamos que se decreta esta estrada, suponhamos que as nossas circunstâncias não são as que tenho figurado, qual há de ser o resultado? Eu já mostrei em outra sessão que o produto desta estrada não dará aos acionistas 4 ou 5%, vem por conseguinte o país a perder uma soma considerável. E não é só a perda desta soma o único mal; desacoroçoa-se o espírito de associação e desacoroçoa-se quando muito releva que se promovam as associações, por isso que muitas empresas só por companhias por ações podem ser efetuadas. Quando precisamos de espírito de associação é que vamos, precipitadamente, animar o espírito de especulação, o espírito aventureiro que tantas desgraças tem causado no meio comercial destes últimos anos.

Como se acabou de ver, não é preciso mais para demonstrar que Bernardo Pereira de Vasconcelos, o verdadeiro autor do projeto promulgado em 31 de outubro de 1835, não era inimigo das estradas de ferro.

No decorrer da discussão provou ser grave erro atribuir ao Estado a organização de uma empresa como esta, que iria onerar o erário com compromissos para a execução de uma obra cujos estudos ainda estavam por fazer e de resultados problemáticos. Condenou a fantasia de se pensar que bastava a passagem das estradas de ferro para as terras se valorizarem; outros fatores são indispensáveis para desenvolver as zonas atravessadas. Estudando-se com mais detalhe e conscienciosamente a evolução das estradas de ferro em nosso país, vê-se quantos erros foram cometidos por causa desta mania que tanto prejudicou o desenvolvimento da viação férrea no Brasil e, também, que até hoje, justamente porque foram mal lançadas, bem poucas de nossas estradas de ferro deram remuneração razoável aos capitais nelas aplicados.

As frases de Vasconcelos, citadas e também deturpadas por vários historiadores, são verdadeiras, porém sem a intenção que lhes quiseram dar.

Vasconcelos não foi contra as estradas de ferro; combateu, sim, e vigorosamente, o governo ser acionista da companhia de Cochrane.

Fica assim perfeitamente esclarecido que Bernardo Pereira de Vasconcelos, autor do projeto sancionado pelo regente Feijó, nunca foi inimigo das estradas de ferro.

   

Nascimento Brito
Meio século de estradas de ferro
Rio de Janeiro, 1961

Em defesa de um estadista
A Lei de 26 de junho de 1852
e seus efeitos

Referências

Brasília nos planos ferroviários (DF)
Ferrovias concedidas do plano de 1890 | EF Tocantins | Cia. Mogiana | Ferrovia Angra-Catalão | EF Goiás | Ferrovia Santos - Brasília
O prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil | A ferrovia da Cia. Paulista | Ferrovias para o Planalto Central | Documentação
A idéia mudancista | Hipólito | Bonifácio | Independência | Império | Varnhagen | República | Cruls | Café-com-leite | Marcha para oeste | Constitucionalismo | Mineiros | Goianos | Projetos de Brasil | Ferrovias para o Planalto Central
 
  
    
 
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