Entre Divinópolis e a capital mineira, a tração é
elétrica, inclusive para os trens de longo percurso.
Ferrovias para Brasília - 1971
Ir a Brasília de trem
está virando rotina
Revista "Refesa", Mar.-Abr. 1971
Refesa era uma publicação bimestral do Dep. Relações
Públicas da
Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA).
Acervo: José Emílio Buzelin
(SPMT) / Pesquisa
e digitalização: Chris R.
Uma extensa e bem elaborada matéria, com fotos espetaculares, tinha o claro sentido de vender a imagem do trem Expresso Brasil Central. Daí, talvez, o título, de significado vago, tendendo mais para o reclame do que para uma informação objetiva. Porém o texto, escrito por alguém que vive e gosta da ferrovia, é denso de informações do maior interesse.
Pelo menos uma vez por mês José Maria dos Reis, um dos 14
camareiros da 5ª Divisão - Centro-Oeste da Rede Ferroviária
Federal (resultante da fusão das Estradas de Ferro Bahia a Minas,
Goiás e Rede Mineira de Viação), vai e volta, de
Belo Horizonte a Brasília, no carro dormitório que corre
entre as duas capitais, três vezes por semana, atrelado ao Expresso
Brasil Central. São, ao todo, 32 horas e 28 minutos de viagem que
cumpre cada um desses cabineiros, únicos componentes da equipagem
que completam o percurso total, já que nele se revezam cinco chefes
de trem, outros tantos auxiliares e maquinistas e alguns fiscais. Apesar
do tempo, ao qual se devem acrescer mais 9 ou 12 horas para atingir o
Rio de Janeiro, via São Paulo ou Minas, é bom que se diga,
desde logo, que somente no ano passado quase 23 mil brasileiros chegaram
ao Distrito Federal por estrada de ferro.
Roteiro das Alterosas
A primeira parada, para quem sai de Brasília ou penúltima,
em sentido contrário até agora não foi oficialmente
entregue à RFFSA pela Cia. do Batalhão Mauá,
que implantou os trilhos no planalto goiano até o Distrito
Federal. A estação, padronizada, do mesmo tipo da
de Bernardo Sayão, no Núcleo Bandeirante, identifica-se
como Posto Ipê, possuindo três portas de frente para
a linha e uma lateral, com plataforma de cimento e cobertura, igual
à que lhe segue, no km k26 [sic] Calambal, assim chamada
em homenagem ao engenheiro que lá residiu durante as obras
fato que reproduz velha tradição ferroviária.
Até Roncador Novo, no quilômetro zero, a última
(ou primeira) das modernas estações de arquitetura
funcional, o trem desenvolve boa velocidade, que diminui assim que
ganha os trechos ainda não retificados da antiga Estrada
de Ferro Goiás. À medida que a composição
se afasta de Brasília, a vegetação se torna
mais densa e basta, surgem as fazendas de criação
de gado bovino, multiplicam-se os cursos de água e a topografia
se altera, aparecendo as primeiras montanhas, inexistentes no planalto
do Distrito Federal, onde a vista se prolonga até a fímbria
do horizonte, sem qualquer obstáculo da natureza, o que,
de certo modo, desagrada principalmente aos cariocas, mineiros e
capixabas que sentem falta de tais acidentes geográficos.
Após a maior obra de arte do trecho recém-construído,
em fase de consolidação, enorme ponte-viaduto de altura
impressionante, existe parada oficial, ainda sem plataforma, que
lembra o sentido pioneiro e colonizador do trem, construído,
todo ele, nas oficinas da própria RFFSA, em Divinópolis
ou Araguari: a dificuldade de rústicos passageiros, especialmente
mulheres, para alcançarem os degraus dos carros. De repente,
pouco adiante, o túnel prova categórica da transformação
do terreno percorrido já a desafiar a capacidade realizadora
do homem.
Boi na linha
A ferrovia é moderna: o leito da estrada, embora de bitola
métrica, para evitar baldeação, dadas as longas
extensões intermediárias entre os grandes centros
cosmopolitas e a "cidade futuro", está preparado
para receber, na época oportuna, os trilhos com maior distância
entre si; os carros, de aço, confortáveis, revestidos
de fórmica, mesmo na segunda classe possuem água corrente
e filtrada, poltronas de espuma e boa manutenção.
Mas, apesar de tudo, do esmero e do cuidado, há que ter paciência,
quando surge um boi na linha. Isso realmente acontece e só
acontece na parte nova da ferrovia, na altura do quilômetro
58, perto de Engº Amorim, dada a imprevidência de um
ou outro criador que não cerca suas pastagens. Resultado:
o maquinista se vê na contingência de puxar os freios,
reduzir a marcha e buzinar, estabelecendo um curioso contraste entre
a "diesel" que não tem sino nem apita, porque isso
ficou fora de moda, e o animal assustado, a correr sobre os dormentes,
por algum tempo, até que o instinto o leva a saltar para
um dos lados, quando não estiver entre encostas.
Sob risos gerais o chefe do trem (o nº 1 do revezamento), que faz
o trecho até Roncador Novo (quilômetro zero), João
Augusto Alves, goiano de Gumari, explica porque a composição
diminuiu a marcha. E tranqüiliza os mais impacientes, assegurando
que os minutos perdidos serão loco reconquistados.
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Na viagem de Belo Horizonte a Brasília, o cabineiro
do carro-dormitório é o único que não
tem revezamento.
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Bernardo Sayão funcionará como parada de subúrbio,
quando estiver pronta a estação de Brasília,
a 6 quilômetros do eixo monumental.
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Economia e bem-estar
Em Goiandira, ao passar o serviço ao seu sucessor, o chefe nº
2 Osvaldo Póvoa, contando 26 anos de ferroviário e dispondo
da ajuda do auxiliar Osvaldo Neves (38 anos na ativa), explica a razão
das trocas mais amiudadas de pessoal: com elas a administração
diminui as despesas de manutenção, porque possibilita o
retorno a casa no mesmo dia, sem pagamento de horas extras e de hospedagem,
além de permitir ao servidor um contato mais estreito e permanente
com a própria família. Naquela cidade goiana, importante
entroncamento ferroviário, o Expresso se demora além do
previsto devido à manobra indispensável para anexar os carros
de passageiros procedentes de Anápolis e Goiânia, com predominância
de gente humilde, para a qual a estrada de ferro é o único
meio de transporte acessível. É então que o trem
"engorda" sobremaneira, somando aos 23 passageiros de primeira
classe, mais 34 e aos 58 de segunda, outros 131, perfazendo o total de
246 pessoas.
Despedida ruidosa
Laerte Varison, dos quadros da extinta EF Goiás, é o chefe
nº 3. Começou como mensageiro em 1953 e agora tem a responsabilidade
de conduzir o Expresso até Ibiá, solucionando os numerosos
problemas que se apresentam, o mais delicado dos quais é o das
mocinhas de Monte Carmelo, que sustentam anos a fim, uma engraçada
prática, nem sempre bem compreendida: aglomeram-se na estação
para a "despedida" de colegas que regressam à escola
em Belo Horizonte. E com freqüência "invadem" o carro-restaurante,
fazem algazarra, mexem com os que lá encontram, pedem que se lhes
paguem doces ou maçãs e, finalmente, carregam qualquer coisa
que esteja sobre as mesas ou junto às janelas, como lembrança:
paliteiro, açucareiro, saleiro, biscoitos, balas, em suma, algo
que possam exibir como troféu ao voltarem para casa. Laerte coça
a cabeça e informa:
É o diabo. Pessoalmente gosto das brincadeiras. Mas às
vezes elas se excedem e há passageiros que se irritam. O mais difícil
é que são todas moças de recursos, em geral filhas
de doutores, de funcionários da agência do Banco do Brasil
ou de comerciantes...
Madrugada a dentro
A Ibiá, município em que por muito tempo trabalhou o atual
superintendente de Finanças da Rede Ferroviária Federal,
dr. Oscar Pires, o Expresso Brasil Central chega por volta das 3h30. Quem
assume o comando é Joaquim Veríssimo, um dedicado chefe
à espera de promoção. Mineiro, pelo jeito e pelo
tom, confere os boletins e memorandos e explica, atendendo a pedido:
Aquele monte de gente, dormitando ali na estação,
é um bando de ciganos que chegou ontem, no misto. Ninguém
sabe para onde vão e raros são os que lhes dão
conversa. A nós, desde que comprem os bilhetes, não
compete fazer perfuntas. E isso nem mesmo convém, em casos
tais. Basta que se comportem e respeitem o Regulamento.
Depois disso, com a assistência do auxiliar José Nunes,
o chefe nº 4 parte para a conferência e o picotar das
passagens, através de corredores atulhados de malas e sacos,
com mulheres e crianças deitadas por baixo dos bancos dos
carros de segunda classe, prática tolerada apenas durante
a madrugada, em face da notócia impossibilidade desses humildes
usuários pagarem mais e da imposição cívico-social
de transportá-los. Afinal, as distâncias são
enormes, o dinheiro pouco, a necessidade muita e a característica
humana da ferrovia, uma constante, que coexiste com a evolução,
o progresso técnico e a melhoria geral das condições
de viagem.
Na reta final
Dos 147 passageiros que partem de Ibiá (53 na primeira classe
e 94 na segunda) apenas 52 chegam a Garças de Minas (12 na
1ª e 33 na 2ª), assumindo, então, o chefe nº
5, Manoel Porto do Bonfim, cujo nome é, ao mesmo tempo, promessa
e garantia. Com 34 anos de serviço, o antigo guarda-freios
que entrou para a Rede Mineira de Viação em 1937,
exerce as funções atuais desde 52, estando em vias
de aposentar-se. É um montanhês tranqüilo e compenetrado,
afável e cioso de suas responsabilidades, maiores ainda porque
conferidas pelo fiscal Ildeu Silva, outro veterano. De Garças
até Divinópolis, tudo corre sem maior novidade, diminuindo
a cada parada o número de passageiros que ali chega reduzido
à metade. Até mesmo o carro-dormitório, no
qual 13 dos seus 16 leitos estiveram ocupados no percurso, já
então conduz apenas três homens e um casal embarcado
em Brasília, que, por sinal, desce na "capital do oeste".
A presença marcante é a do auxiliar José Maria,
oriundo da extinta Estrada de Ferro Bahia e Minas e que desde 1951
viaja naquele trecho, zelando pela ordem, limpeza e conservação
dos carros. Mas em Divinópolis, onde hoje reside, termina
sua missão sem que os então já escassos ocupantes
do trem dêem por isso, preocupados com a chegada a Belo Horizonte,
dentro em breve, com o Expresso a correr mais, devido à tração
elétrica. Apesar da velocidade maior, o trem que varou planaltos
e planícies alcança o destino discretamente, com raras
pessoas na estação à espera de parentes e amigos.
Conseqüência lógica de uma composição
inter-estadual, vale dizer, de mutação freqüente
de grupos de viajantes e de concorrência rodoviária,
mais intensa nas proximidades dos núcleos densamente habitados,
da ordem de 28 ônibus diários entre Belo Horizonte
e Divinópolis.
Uma passagem subterrânea, que liga as estações
da 5ª e da 6ª Divisões da Rede Ferroviária
Federal na capital mineira e o habitante do Rio de Janeiro completa
a proeza com gosto de aventura, que é a de ir à capital
federal de trem, com uma única baldeação. Coisa
que a grande maioria do povo desta Cidade Maravilhosa ainda considera
irrealizável, espécie de "conversa fiada prá
boi dormir". Mas realidade promissora e palpável que
no curso de 1970, em conexão com os trens de aço "Vera
Cruz" e "Santa Cruz" pelo menos uns cinqüenta
mil brasileiros terão experimentado.
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Trens de aço no planalto central do Brasil: uma realidade
[de] que muita gente ainda duvida...
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Sucessivas composições de carros-tanque, da 5ª
Divisão Centro-Oeste, estão garantindo o abastecimento
de derivados de petróleo a grande parte de Minas, São
Paulo e Goiás, além do Distrito Federal, a preços
mais baixos.
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