Título
Um pouco de história ferroviária
Engº Arthur Castilho
diretor geral do Departamento Nacional de Estradas de Ferro
in Estradas de Ferro do Brasil 1945
suplemento da Revista Ferroviária, p. 45
O Brasil, na sua fundação e por mais de três
séculos colônia dum dos povos de maior tradição
marítima mundial, devia manter a vocação do
mar como predominante na organização dos seus transportes.
Por outro lado, a colonização, o povoamento se processando
de início na orla estreita do litoral, a penetração
para o hinterland esbarrava ante a barreira quase intransponível
do paredão da serra do Mar.
Por isso, de início as nossas vias de comunicações
terrestres convergiam todas para os portos, onde se processava a
cooperação do transporte marítimo, ligando
os portos nacionais entre si e o prolongamento do transporte ao
exterior pela navegação, a longo curso.
Primeiramente, existiu o binômio da cooperação:
tropeiros até o porto e navegação marítima
em seguimento; mais tarde, numa progressão mui lenta, a cooperação
do transporte no tríplice sistema — cargueiros, estradas
de ferro e navegação.
Daí a tendência geral de construir os sistemas ferroviários
isolados, partindo dum porto, na província, rumo ao interior.
Os seguintes quadros provam a exatidão da afirmativa.
[segue-se a lista de todos os trechos
abertos ao tráfego de 1854 a 1944]
Criaram-se, assim, sistemas isolados de transportes terrestres,
interligados por navegação precária de cabotagem.
Dum modo geral, isto permanece até hoje — o que determinou
certa observação crítica, de profunda realidade
— O Brasil é um país continental com comunicações
de arquipélago.
Os técnicos brasileiros sentiram, de há muito, a
necessidade inadiável das interligações dos
transportes interiores.
O notável técnico Honório Bicalho, em 1881,
ao projetar o primeiro plano de viação no Brasil,
justificava:
“Para base desse sistema é necessário
estabelecer o plano das grandes linhas principais de viação,
que devem facilitar comunicações internas entre todas
as províncias do império e proporcionar entroncamento
mais próximo às vias de comunicação
de mais ou menos limitado interesse local, que levam a todos os
pontos, o benefício de um meio de transporte aperfeiçoado.”
Em 1882, o 1º Congresso Ferroviário, realizado no Rio
de Janeiro, apresentava, através de um relatório de
comissão encarregada de estudar o assunto, o seguinte e oportuno
comentário:
“A necessidade de organizar um plano geral de viação
férrea não se pode chamar idéia nova: há
anos foi largamente discutida no parlamento e tem figurado muitas
vezes nas aspirações dos relatórios, mas para
cair sempre no esquecimento.
Não acreditamos que este adiamento provenha
da falta de vontade de ligarem os governos o seu nome a tão
indispensável melhoramento.”
A comissão nomeada pelo Governo Provisório em janeiro
de 1890 para organização do plano geral de viação
federal e composta dos engenheiros coronel Jeronymo de Moraes Jardim,
Alvaro Rodovalho, Marcondes dos Reys, Edmundo Bush Varella, Julio
Horta Barbosa [BH e plano viário
MG? ver Telles] e José Gonçalves de Oliveira,
assim se manifestava em seu relatório, em novembro de 1890:
“A comissão começará declarando
que em seu espírito não influíram, de modo
algum, considerações filiadas à importância
dos recursos do Tesouro para execução do plano geral
de viação. Organizar a rede de viação
de um país é questão claramente diversa de
indicar as vias de comunicação cujo onus possa o erário
público comportar em um momento dado. A primeira que certamente
envolve a tarefa incumbida à comissão, traduz o pensamento
de estabelecer a unidade e harmonia de vistas na confecção
dessa grande obra que tantos e tão graves interesses afeta;
exprime a alevantada e patriótica resolução
de pôr termo à confusão, anarquia e incongruências
de toda a sorte, que daria lugar para o futuro, em maior escala
ainda do que o tem feito até agora, o pernicioso sistema
de concessões a esmo, sem orientação segura,
sem estudo sério, e o que é mais, sem atenção
aos poderosos e variados interesses que se prendem à viação
pública. Da segunda cogitará o governo, em vista do
plano geral, executando-o de harmonia com os recursos do Tesouro,
a começar pelas linhas mais urgentes e susceptíveis
de pronta remuneração e adiando a construção
das que puderem ser por enquanto dispensadas, sobretudo as que no
projeto são indicadas simplesmente para o futuro aperfeiçoamento
da rede.
Compreendendo assim a sua incumbência, procurou
a comissão confeccionar o plano geral, de modo a abranger
todo o território da República, apreciando devidamente
os diversos elementos sociológicos que buscam na viação
aperfeiçoada arrimo e vigor.
É provável e natural que em certo
grau de desenvolvimento do país, novas linhas se tenham de
adicionar à rede geral agora organizada, mas onde foi possível
nas condições atuais prever-se uma grande necessidade
nacional a reclamar uma via de comunicação, quer em
nome das exigências do comércio, quer por motivo de
ordem política ou social, administrativa ou estratégica,
estudou a comissão e propôs o traçado geral
que lhe pareceu mais acertado.
O plano geral que a comissão tem a honra
de apresentar ao governo, em resultado desse primeiro objeto de
missão que lhe foi incumbida, é, pois, um conjunto
harmônico de vias férreas e fluviais, a cuja concepção
presidiu o pensamento de estabelecer a norma a seguir na realização
da rede de viação do país, e a de prover as
necessidades de caráter geral por isso mesmo encerradas na
esfera das atribuições do governo federal.”
O grande engº Paulo de Frontin, no seu estudo “Política
de viação brasileira, atuais redes de comunicações,
futuras redes”, fez as seguintes e judiciosas considerações:
“De fato, o Brasil, durante mais de três
séculos, foi colônia de Portugal, e as relações
entre as diversas capitanias eram quase exclusivamente com a metrópole.
A direção para o mar era, pois, o caminho pelo qual
ligado à navegação se ia à metrópole.
E, por isso, ao se substituir a divisão territorial das capitanias
pela de província, cada uma das províncias procurou
dirigir sua viação férrea para o mar, visando
a exportação de seus produtos.
Não os considerou que ao lado de exportação,
tinha de se levar em conta o consumo da própria população.
Em se tratando de uma população diminuta — como era
no período do Brasil colônia — com uma produção
relativamente grande, esse sistema satisfazia às necessidades.
Mas à medida que a população cresce e aumentam
as relações entre o produtor e o consumidor nacionais,
é indispensável para o desenvolvimento da riqueza
pública que haja a mais intensa circulação,
rápida e barata, entre estes dois elementos produção
e consumo.
Não se obedeceu, porém, a essa orientação:
excetuando o traçado da EF Central do Brasil, justificado
por se tratar da capital do país, e assim ponto inicial da
nossa rede de viação férrea; nas outras estradas
de ferro que sucessivamente se foram construindo, uma procurou Santos,
outra a Bahia, outra Recife, outra Cabedelo, porto do Estado da
Paraíba, outra Fortaleza, outra Belém do Pará,
outra Paranaguá, outra Imbituba, etc., e assim se verificou
a tendência dos traçados para o mar, incontestavelmente
contrário ao desenvolvimento da riqueza pública pela
intercomunicação ferroviária entre os diversos
Estados da União.
O que se me afigura condição indispensável
à indissolubilidade e integridade do território da
nossa Pátria, é que essas linhas sejam levadas a efeito,
permitindo comunicações rápidas e econômicas
entre as diversas regiões do nosso território; só
assim poderemos dirigir para o hosso hinterland a colonização
nacional e estrangeira, que permitirão o povoamento de uma
vastíssima região, calculada em 5.300.000 quilômetros
quadrados, cuja população é atualmente insignificante.”
O ilustrado técnico engº José Luiz Baptista,
em publicações, conferências, pareceres — tem
sido um infatigável batalhador em prol das interligações
dos descontinuados sistemas ferroviários brasileiros.
Finalmente, o Plano Geral de Viação Nacional, aprovado
pelo decreto nº 24.492 de 29 de junho de 1934 completou, no
domínio ferroviário, a orientação racional
necessária à nossa expansão de transportes
terrestres.
Convém ressaltar aqui um comentário oportuno que
a comissão redatora do plano houve por bem expressar:
“IV — Razões de ordem econômica criaram
os sistemas de vias de comunicações independentes,
referidos na conclusão, i, mas não tardaram em surgir
interesses comerciais entre hinterland vizinhos ou pouco distantes,
criando correntes de tráfego para as quais o transporte pelo
tronco oceânico é inconveniente pela curta distância
em que pode ser aproveitado.
A ligação direta entre esses hinterlands
tornou-se, assim, necessária e sua realização
poria o país a coberto dos perigos expostos no comentário
da conclusão II, atendendo, além do mais, à
conveniência de ordem política de ligar entre si e
à capital da União as capitais de 18 Estados.”
O comentário a que alude o período supra é
deveras notável pela precisão com que se realizou
no Brasil o prognóstico, em menos duma década.
Efetivamente a navegação marítima, ligando
os sistemas de vias de comunicações referidas na conclusão
I põe em ligação todos os portos do litoral
e seus respectivos hinterlands, isto é, todos os portos e
todo o território nacional atingidos por esses sistemas de
viação.
É, além disso, o meio de transporte menos dispendioso,
desde que este se efetue em distância suficientemente grande
para que as despesas portuárias representem parcela pequena
no custo total do referido transporte. Não é, porém,
um meio de transporte rápido, pois a grande velocidade na
navegação muito acrescenta a seu preço de custo
e, em caso de guerra, fica exposto a dificuldades e perigos que
podem dar lugar ao isolamento das regiões do país
que não dispuserem de vias de comunicações
interiores.
——
A recente conflagração mundial trouxe, desde 1939,
uma completa desorganização dos transportes no Brasil,
como decorrência da falta de coordenação dos
transportes interiores, terrestres ou fluviais.
A antiga Inspetoria Federal das Estradas, nos últimos lustros
de sua existência (1931-1941), pugnou sem desalento pela ultimação
dos planos de ligação Centro - Norte do Brasil, como
necessidade essencial ao fomento do país e como obra de meritória
assistência às populações de leste, nordeste
e norte do Brasil.
A nossa situação financeira não permitiu a
conservação em orçamento das várias
propostas daquela repartição e a irrupção
da guerra, em 1939, com a conseqüente irregularidade na navegação
marítima, na cabotagem como no longo curso, trouxe a confirmação
plena da justeza dos argumentos dos que se batiam pela ultimação
do Plano de Viação nacional.
O infatigável ministro da Viação, general
Mendonça Lima, em brilhante documento nº 45-G/M, datado
de 3 de abril de 1941, levou ao conhecimento do sr. presidente da
República uma série de observações mostrando
a relevância do empreendimento da ligação da
EF Central do Brasil com as diversas redes e estradas ferroviárias
do norte do país.
Do início, a segurança nacional:
“Em primeiro lugar, as ligações ferroviárias
do Centro com o Norte do País satisfazem imperiosas exigências
da segurança nacional, por estabelecer um eixo ao abrigo
de ataques de forças marítimas ou de tropas desembarcadas,
sempre possíveis em tão extenso litoral, daí
decorre a certeza de que, salvo hipóteses bem excepcionais
e mesmo em frente a uma superioridade adversária, não
serão interrompidas as comunicações entre o
governo central e as administrações das unidades setentrionais.
É evidente que hoje, com relativa facilidade,
a aeronáutica estabelece certas comunicações;
porém as vias terrestres (ferroviárias e rodoviárias)
permitem resultados que não podem ser obtidos pelos transportes
aéreos — locomoção de tropas e de armamentos
pesados, recebimentos nos postos determinados de suprimento para
o exército emc ampanha, etc.”
Depois, a parte relativa à economia nacional:
“Outra grande vantagem que resultará das
ligações ferroviárias de que trato é
o alargamento das zonas de produção, é a facilidade
de intercâmbio de seus produtos entre regiões de lavouras
caracterizadas, é a criação de um maior mercado
consumidor interno, é, enfim, a implantação
de uma base, a exemplo do que até aqui aconteceu com o litoral,
para o desenvolvimento de regiões mais a oeste, numa verdadeira
conquista para a economia pátria.”
Em resumo, o programa então proposto se compunha da construção
de 3.478 km, orçados em Cr$ 833.000.000,00 a serem executados
em quatro fases:
Primeira fase |
a) Montes Claros - Contendas |
610 km |
Cr$ 150.000.000,00 |
b) Feira de Santana - Alagoinhas |
88 km |
Cr$ 20.000.000,00 |
c) Propriá - Palmeira dos Índios |
90 km |
Cr$ 23.000.000,00 |
d) Campina Grande - Patos |
220 km |
Cr$ 49.000.000,00 |
e) Itapipoca - Sobral |
93 km |
Cr$ 13.000.000,00 |
|
1.101 km |
Cr$ 255.000.000,00 |
Segunda fase |
a) Itaíba - Piratiba |
109 km |
Cr$ 27.000.000,00 |
b) Quebrângulo - Glicério |
87 km |
Cr$ 20.000.000,00 |
c) Giréu - Crateús |
217 km |
Cr$ 50.000.000,00 |
|
413 km |
Cr$ 97.000.000,00 |
Terceira fase |
a) Paulista - Teresina |
550 km |
Cr$ 144.000.000,00 |
b) Oiticica - Foz do Berlenga |
180 km |
Cr$ 38.000.000,00 |
c) Periperi - Teresina |
200 km |
Cr$ 45.000.000,00 |
|
930 km |
Cr$ 227.000.000,00 |
Quarta fase |
a) Alagoa de Baixo - Petrolina |
574 km |
Cr$ 144.000.000,00 |
b) Itapicuru - Bragança |
466 km |
Cr$ 110.000.000,00 |
|
1.040 km |
Cr$ 254.000.000,00 |
O ministro da Viação julgava de urgência a
execução dos trabalhos da primeira fase, para o que
pedia um crédito anual de Cr$ 35.000.000,00. Praticamente
sete anos de execução dos trabalhos.
Esta foi a origem da organização do plano quatrienal
para execução das ligações ferroviárias
norte com o sul do país, na importância total de Cr$
655.032.810,00, aprovado pelo decreto-lei nº 6.646 de 29 de
julho de 1944.
A construção das linhas referentes a ligação
norte-sul prosseguiu, intensamente, nos anos de 1944 e 1945, dentro
do programa estabelecido e a conclusão de todas as ligações
previstas no citado programa, aprovado pelo decreto nº 6.645
de 29 de julho de 1944 deverá ser ultimada antes de 1950,
sendo que a ligação das linhas da Central do Brasil
com as da Leste Brasileiro será efetivada dentro de 18 meses.
Há também, em estudos avançados, um programa
da ampliação da capacidade do transporte ferroviário
entre o centro e o sul do país, com a execução
prevista para um decênio.
Sobre a história ferroviária do Brasil, eis o que
sei e posso transmitir ao leitor amigo.
[Mapa]
Ligações ferroviárias
As chamadas ligações ferroviárias constituem
um conjunto de obras que estão sendo conduzidas em vários
pontos do País, orientadas segundo o Plano Geral de Viação
estabelecido desde 1944. Sua realização, sobre obedecer
ao mencionado plano, visa intercomunicar algumas estradas, efetivando
a própria Rede Ferroviária Brasileira, ainda constituída
de unidades dispersas, sem conexão e, conseqüentemente,
sem poder proporcionar os benefícios que deve oferecer para
o próprio desenvolvimento econômico nacional.
Entre todas essas ligações, que são muitas,
a já denominada Norte-Sul é, sem dúvida, a
de maior alcance. Vai de Montes Claros, da Central do Brasil, no
sertão de Minas Gerais, a Contendas, da VF Leste Brasileiro,
no sertão da Bahia. Sua extensão não chega
a 600 km, porque mede 596, mas sua importância é extraordinária.
Unindo essas duas ferrovias, o trecho projeta todo o sul do País
já à região nordestina, em Sergipe. Daí,
outra ligação que está sendo processada entre
Propriá e Colégio reflete essa projeção
na própria Nordeste por entronca os trilhos da Great Western
que já ali se estendem, servindo Alagoas, Pernambuco, Paraíba
e Rio Grande do Norte.
O efeito desses dois empreendimentos, porém, completa-se
com outro mais: a Great Western, prolongando-se de Campina Grande
para Patos, na direção oeste da Paraíba, vai
alcançar a Rede de Viação Cearense, onde o
prolongamento de Oiticica para Teresina buscará a EF São
Luís - Teresina, até a capital do maranhão.
Esse ponto, aliás, deverá ser atingido por outro modo
com o prolongamento da antiga EF Petrolina, hoje incorporada à
Leste Brasileiro, além da cidade de Paulista, já no
território do Piauí, passando por Jaicós, Picos
e Valença, no mesmo Estado. Seguindo tal rumo, porém,
a ligação é mais remota, pelo vulto das obras
que compreende.
Afora essas ligações principais para a formação
efetiva da Rede Brasileira, muitas outras estão projetadas,
algumas em desenvolvimento. O mapa ao lado indica-a esquematicamente.
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