Pedra Fundamental de Brasília - 1921-1922
Título

Anais da Câmara dos Deputados, 1922, vol. IV, p. 226-240,
sessão de 12 de setembro de 1922 [cf. AH2:117-133]

O sr. Americano do Brasil — Sr. presidente, enquanto no Rio de Janeiro, tomados de vivo entusiasmo, cercados de cultos elementos de espírito internacional e patrício, ao entono de palmas vibrantes e de aclamações generosas, celebrávamos a passagem do primeiro centenário da Independência, no planalto central de Goiás, naquele formoso rincão de minha terra natal, uma outra comemoração, homenageando o sol de 7 de setembro, não menos suntuosa e patriótica, tinha lugar, a da centenária lembrança da edificação da capital no interior do país, traduzindo-se no levantamento solene de sua pedra fundamental, nos termos do Decreto nº 4.494, de 18 de janeiro deste ano.

A velha aspiração remonta, em verdade, a fases anteriores ao grande acontecimento político de 1822 mas, deve-se dizer, foi um magno tema que tomou foros de propriedade com os formosos conceitos da brilhante propaganda liberal, tendo sido oficializada no seio carinhoso e inteligente da junta provisória de São Paulo em 1821 e em 1822, pela primeira, vez apresentada em indicação na régia côrte de Lisboa.

Almejo de tantas épocas, sonho de tantas gerações passadas, de estadistas e de políticos notáveis, recebe agora um vislumbre confortante de realidade: como que oficialmente está anunciada a abertura de novo período ao patriótico ideal, com a projeção do alicerce fundamental, a significação perfeita da unidade de vistas concorrendo para sua completa transformação em realidade.

Em todos os tempos os maiores vultos do cenário financeiro do país, diante dos aterradores deficits, ao encarar a situação aflitiva dos cofres públicos, têm tido a visão da melhoria deste incômodo estado de coisas com a transferência da capital para o centro; o Rio ficaria descongestionado do oficialismo, só acalentando o ideal de atingir a perfeição industrial, o centro culminaria de trabalhos imprescindíveis para seu progresso, linhas férreas prenderiam os quatro pontos cardiais do país à capital, o comércio e a exportação salvariam as finanças da República.

Neste momento, sr. presidente, nada impede o definitivo lançamento dos alicerces da nova capital; todos os elementos estão de acordo: o poder executivo, sancionando e após executando a proposição referente ao reconhecimento oficial da zona demarcada pelo sábio Luís Cruls e o lançamento do marco inicial; o Congresso, aceitando e votando o aludido projeto, encarecido nas Comissões de Justiça e de Finanças com o concurso, respectivamente, do distinto representante paulista dr. Prudente de Morais e do ilustre deputado paraense dr. Bento de Miranda; os financistas, admitindo no alvitre proposto os pródromos de novo futuro econômico; a imprensa, emprestando o vigoroso auxílio de suas luzes e batendo palmas à patriótica iniciativa.

São aplausos gerais e unânimes, sr. presidente, e não vejo realmente a existência de nenhum óbice a impedir o raiar almejado do novo sol, pressentido há mais de século.

Comentando em sua edição de ontem, um dos mais vulgarizados vespertinos cariocas o lançamento da pedra fundamental no planalto goiano, fazia notar não existir nenhuma originalidade na lembrança, que pode ser remontada aos dias da Independência.

Se é verdade incontestável que a ereção do marco inicial da nova capital foi, ao que sabemos, pela primeira vez tentada pelo projeto convertido em lei, de que fui autor, com o nobre representante do Maranhão, sr. Rodrigues Machado, também é certo não oferecer dúvidas a justificada concessão de cabelos brancos à idéia da mudança da metrópole para as belas paragens do hinterland. Os autores do projeto não podiam ignorar esta última circunstância histórica. (Apoiados).

O sr. Rodrigues Machado — Quando apresentamos o projeto não tivemos intuito de reivindicar para ele qualquer originalidade; queríamos apenas que fosse realizada a velha e secular aspiração.

O sr. Americano do Brasil — A observação, sr. presidente, relativamente à antiguidade do genial propósito de transferir a capital do país excede à própria moção de José Bonifácio, a quem inegavelmente está reservado um lugar especial na significação histórica da patriótica medida.

Será, sem dúvida, fazer justiça e homenagear o passado, reviver os vultos e os fatos ligados ao memorável desejo que tem prendido e irmanado, dentro do mesmo ideal, espíritos nacionais e estrangeiros.

Desprezando antecedentes carecedores de base, iniciamos a página de veneração ao passado recordando, de par os apontamentos tomados a uma publicação portuguesa, que ao célebre estadista inglês Pitt, em brilhante discurso sobre os destinos das colônias portuguesas, coube aconselhar a fundação de uma Nova Lisboa no interior do Brasil. O alto valor do político de Inglaterra, e sua atividade, ao lado do papel que essa nação principalmente em épocas vividas exerceu sobre Portugal, parecem garantir a originalidade e o interesse da medida proposta pelo grande estadista.

Mas foi certamente pela palavra do ilustre jornalista e político lusitano H. J. da Costa Furtado de Mendonça [Hipólito], exilado em Londres, e conhecedor talvez dos planos anteriormente traçados por Pitt, que o significativo ideal teve grande repercussão na América, por intermédio do Correio Braziliense, onde em luminosos artigos advogava a importante causa, concitando o governo a operar a retirada da caital para o interior do Brasil, ficando os povos em aprazível situação junto « às cabeceiras de grandes rios e ali edificariam uma nova capital, começando por abrir estradas que se dirigissem a todos os portos de mar », empresa fácil que só não iria avante por « meros subterfúgios ».

Isto em 1808. E anos depois, tangendo as mesmas idéias, definindo a latitude do novo núcleo social, opinava que essa paragem estava « indicada pela natureza, na própria região elevada do seu território, de onde baixariam as ordens como baixam as águas que vão pelo Tocantins ao norte, pelo Prata ao sul, e pelo São Francisco a leste ».

Era a visão do descalabro político e do abandono da mineração que se apresentava ao espírito esclarecido de Furtado de Mendonça, de envolta com as intrigas do Paço.

Tal como hoje, mais de cem anos corridos.

Em 1810 o eminente conselheiro Velloso de Oliveira, em desenvolvido memorial ao governo da metrópole sobre a administração da província de São Paulo, combatia a colocação da Côrte em porto marítimo, lembrando que a mesma ficaria melhor em lugar são e ameno, longe do bulício e do tropel indistinto de todas as classes.

À notável observação do chanceler, mais tarde, em 1821, no período agitado da transformação política, os próprios filhos de São Paulo deviam juntar uma página definitiva: refiro-me à representação da Junta Provisória, aprovada na sessão de 20 de outubro de 1821, entregue aos deputados às Côrtes de Lisboa, sendo justiça recordar que da referida junta faziam parte Martim Francisco e José Bonifácio, este último o patrono da causa patriótica.

Insinuava aquele documento a necessidade da edificação de uma « cidade central no interior do Brasil para assento da Côrte ou da Regência, que poderá ser na latitude pouco mais ou menos de 15 graus », de onde partissem « estradas para as diversas províncias e portos de mar », favorecendo o « comércio interno do vasto império do Brasil ».

Uma das interessantes achegas para a história desse secular ideal teve sua gênese nas Côrtes de Lisboa, em 1822, e partiu do ativo espírito de um deputado ao parlamento português, cujo nome é ignorado.

Em trabalho intitulado « Aditamento ao projeto de Constituição para fazê-la aplicável ao Reino do Brasil » desenvolve várias matérias em treze artigos, sendo que o primeiro determina o levantamento da nova capital no interior, com « a denominação de Brasília ou qualquer outra ».

Justifica o aditamento « a necessidade e a prudência do artigo. A necessidade porque o Brasil somente poderá ser grande império reunido e povoado; e eis o que se consegue com a nova capital. Ela fica 300 léguas, com pouca diferença, ao norte e sul e quase outras tantas a leste e ao oeste 100; ficam, portanto, suas relações com as províncias mais apertadas, comunicável ao Pará, Maranhão, Rio Grande e São Paulo e mais Províncias que para o futuro se criarem pelos rios Paraguai e Amazonas; à Bahia pelo rio São Francisco. A povoação se concentral no local mais fértil do reino, entretanto, fica ao abrigo de toda a invasão, em estado de defender e mesmo de expulsar o inimigo quando se tenha apoderado de alguma cidade marítima, ao alcance de rechaçar as pretensões dos vizinhos; o que jamais será possível estando a capital em outro qualquer ponto; e enquanto as circunstâncias não permitirem outras medidas, uma só universidade em seus arredores bastará a todas as Províncias. A prudência: porque este é o único meio de evitar as rivalidades que se descobrem entre as Províncias ». Sem discutir a situação desta pretendida capital e seu futuro econômico, deixamos referida a passagem como elemento histórico.

O citado documento, sr. presidente, termina com uma Advertência, seguindo--se as três proposições:

1º A capital do Brasil será fundada segundo o plano que derem três engenheiros, que devem ir escolher o lugar mais próprio, eleitos pelos deputados do Brasil, conforme o plano aprovado pelas Cortes;

2º Cada província contribuirá com uma cota anual relativamente à sua riqueza para a fundação da nova capital;

3º Estando concluído o paço das Cortes, da Regência, da Junta Provincial, Cadeia, Igreja e Quartéis etc., se passarão para ela as Cortes, Regência, etc.

Foi esta a primeira vez, justamente um século no corrente ano, que diante de um parlamento se propôs a resolução do magno assunto, mediante bases que deviam ser mais tarde objeto de sério estudo na Constituinte, produzido pelo alto senso de José Bonifácio.

Na sessão da Constituinte do Império, de 9 de junho de 1823, o grande Patriarca da Independência, o sábio que o velho continente cercara de uma auréola prestigiosa, entregou à mesa seu erudito memorial, endereçado desde logo às respectivas Comissões, justificando ser « muito útil, até necessário que se edificasse uma nova capital do Império, no interior do Brasil, para assento da Côrte, da Assembléia Legislativa, dos Tribunais Superiores destinados pela Constituinte », lembrando que a nova capital se poderia denominar Petrópole ou Brasília.

Escrevia com autoridade o patriarca que « sendo ela central e interior ficariam o assento do governo e o da legislatura livres de qualquer assalto, ou surpresa, por parte dos inimigos externos », acorrendo para aumentá-la e às « Províncias do sertão o excesso de povoação sem emprego das cidades marítimas », enquanto pela situação « eqüidistante dos limites do Império, tanto em longitude como em latitude, abrir-se-ia, por meio das estradas que deveriam sair deste centro como raios para todas as Províncias e cidades marítimas e interiores, uma vantajosa comunicação, criando-se em breve tempo um giro de comércio da maior magnitude, visto a extensão do Império, seus diversos climas e produções ».

Falando da igualdade em que ficariam todas as Províncias, referindo-se ao local mais próprio para a edificação, a fim de estabelecer este comércio pelo São Francisco, Tocantins e Paraná, assegurava que « a escolha do local só podia decidir-se exatamente depois dos trabalhos geodésicos e sanitários de uma comissão composta de engenheiros, médicos e arquitetos » e afirmando o insigne patriarca que a construção da « cidade não se faria de repente, mas progressivamente, com o aparecimento progressivo dos cabedais », visto ser « um princípio certo de economia que logo que se ofereçam vantagens certas aos especuladores nunca faltam cabedais precisos para semelhantes empregos ».

Pretendendo, sr. presidente, juntar tão faustosa idéia às disposições da Constituinte, traçou o conhecido memorial o plano mais completo a se poder desejar.

Infelizmente, os próprios sucessos políticos que determinaram a letra da mensagem impediram seu cumprimento: as lutas da independência apaixonaram os ânimos e preocuparam todos os espíritos do governo e da Constituinte, logo após dissolvida.

Em 1833, a requerimento do deputado Ernesto Ferreira França, datado de 2 de julho, foi a memória de José Bonifácio reimpressa, justamente quando surgia uma indicação, cujos termos reviviam o antiquado desejo de transferir a capital do país.

Sem dúvida, sr. presidente, um dos mais decididos apóstolos da brilhante campanha no século XIX foi o insigne visconde de Porto Seguro, o festejado autor da História do Brasil, que em 1834 indicava o retorno ao velho problema, enumerando vantagens, descrevendo as zonas mais convenientes, plantadas no centro do país, junto às cabeceiras do Paraná, Tocantins e do rio Preto. Sobejamente conhecido seu monumental trabalho dispenso-me de comentá-lo.

Ainda o notável publicista em 1849, na primeira parte do Memorial orgânico e em 1850 na segunda, reduz à perfeita lógica, a justos termos, a necessidade da medida proposta, expondo as doze famosas razões, que ficaram, como os mandamentos do decálogo, transformadas em proposições de ordem social, econômica, estratégica, financeira, etc.

Sr. presidente, o grande Varnhagen ampliou a obra do patriarca da Independência fixando à perfeição a zona do território nacional mais apta a conter a nova capital, e mostraremos daqui a pouco que o notável brasileiro selou com sua presença no coração do Império as convicções do Memorial orgânico.

Em 1875, a 10 de setembro, afirmava ainda o senador Jobim, aconselhando a mudança da capital, que « até a política indicava que fosse situada em serra acima », sendo o Rio de janeiro « próprio para um depósito comercial e não para ser capital do Império, que devia estar em um lugar interno, onde houvesse mais segurança: porque um couraçado inglês que queira esbandalhar esta cidade entra pela barra com a maior facilidade, queima, destrói e arrasa tudo ».

E após, o ilustre senador, segundo Varnhagen, descreve o local propício à zona de eleição.

Sr. presidente, quase dois anos depois, em 1877, o visconde de Porto Seguro, à procura da região ideal, batia as poídas estradas dos bandeirantes, pois desejava conhecer de visu a formosa região central, mencionada nas cartas geográficas.

Ainda até hoje a gente mais velha do planalto guarda religiosamente a lembrança da memorável e fidalga visita.

Lê-se de um trecho da carta, conhecida na literatura, datada de 28 de julho, que, no parecer do ilustre historiador, dois pontos, entre todos, no planalto central, são distintos para a edificação: a « paragem onde, a tiro do fuzil, se vêem uma das outras, as cabeceiras dos ribeirões Santa Rita, vertente do São Francisco, Bandeirinha, vertente do Amazonas pelo Paraná [Paranã], e Sítio Novo, vertente do Prata pelo São Bartolomeu e Paraná », ou então « a chapada em declive, que forma o paredão ao nascente da lagoa Formosa, a menos de uns cento e tantos metros antes de acabar a subida do caminho que daí segue para o norte » em direção à serra do Cocal.

Sr. presidente, recordando a plêiade ilustre que deixou seu nome preso à iniciativa de elevado patriotismo, outro não é meu desejo senão prestar-lhe uma justa homenagem, mas o quadro ficaria incompleto se não lhe trouxesse as conquistas da República, os nomes dos pro-homens da democracia, autores da significação constitucional do art. 3º de nosso Pacto Fundamental e da descrição científica da futurosa região, destinada à edificação, sendo que duas magnas figuras se impõem desde logo — Lauro Müller e Luiz Cruls seguidos do ministro Antão Faria, do marechal de ferro, de Antônio Pimentel, de Ernesto Ule, de Eugenio Hussak, de Cavalcanti Albuquerque, dos inteligentes engenheiros, hoje generais, Hastimphilo de Moura, Tasso Fragoso, Celestino de Bastos, de nosso sábio Morize e de tantos outros, cuja cooperação a pátria não poderá jamais olvidar.

Sr. presidente, o nobre ideal não poderia ser indiferente aos grandes espíritos de 89, os legítimos herdeiros dos sentimentos patrióticos do antigo regime: assim, ao cintilante espírito de Lauro Müller, amalgamadas às proposições de José Bonifácio e de Varnhagen, depois de memorável campanha, deve-se lapidar doutrina do art. 3º da Carta constitucional republicana, síntese do eloqüente trabalho evolutivo da longa série mencionada.

Coube a um estadista de gênio receber com real carinho o sábio dispositivo, concordando desde logo em conceder-lhe pronto cumprimento.

Então, sr. presidente, o Marechal da República, secundado pelo notável ministro Antão de Faria, mobilizou a Comissão do Planalto, de que foi chefe o sábio Luiz Cruls, a cuja memória o Brasil não prestou ainda todas as homenagens devidas. (Apoiados).

Coisa rara: a Comissão era competente e desde logo se percebeu que o encargo da demarcação dos 14.400 quilômetros previstos na Constituição ficaria definitivamente resolvido.

Entre os auxiliares do eminente cientista distinguia-se Ernesto Ule, botânico de nomeada. E. Hussak, geólogo de reconhecida proficiência. A. Pimentel, ilustre médico e higienista, autor de várias excelentes contribuições para o estudo do planalto.

De 1892 a 1893 duraram os trabalhos de demarcação, cujo resultado são os três belos relatórios, o pequeno, o médio e o grande, onde, sob todos os aspectos, são permitidas considerações sobre a importante zona alcançada pela treinada Comissão, ou pelas pesquisas de seus ilustres membros.

O sr. Napoleão Gomes — V. Exª dá licença para um aparte que vem corroborar as afirmações de V. Exª?

Estes estudos procedidos pela Comissão Cruls não foram mais que a confirmação da célebre visão do maior dos estadistas brasileiros, o grande Rio Branco, quando já indicava supondo ser originária a idéia da mudança da capital do Brasil.

O sr. Americano do Brasil — Como V. Exª vê, estou falando sem consultar apontamentos; mas não me é desconhecida a opinião de Rio Branco e até posso ampliar a informação do nobre colega, dizendo que a mesma foi lançada à margem da « História do Brasil », de Varnhagen, indicando como soubera de um colega a precedência da memória de José Bonifácio, Constava esta referência histórica das notas ligeiramente colhidas por mim, mesmo porque mostra que um estadista...

O sr. Napoleão Gomes — A opinião de Rio Branco é valiosa, porque se trata do maior estadista brasileiro.

O sr. Americano do Brasil — ... como Rio Branco, da altura de José Bonifácio e de Pitt, era também favorável à mudança da capital do Brasil.

Sr. presidente, aqui no Rio de Janeiro fala-se muito do planalto central; mas o certo é que surge, no espírito da maioria, como pura ficção; a própria imprensa diária, que tanto tem agitado a questão nos últimos tempos, ainda lhe não traçou todas as características, empregando as tintas e os louvores que o planalto merece. Aduzirei ligeiras notas.

O planalto central, ou melhor, a zona demarcada pela Comissão Cruls, não é restrita, ou da mesma extensão que o atual Distrito Federal. Excede-o dez vezes em superfície; tem 90 quilômetros de largura e 160 de comprimento, o que produz o total de 14.400 quilômetros quadrados. Sua população pode ser calculada em 30.000 habitantes. Não é um deserto, como muitos ainda supõem, infestado de animais bravios; cobrem-na inúmeras fazendas de criação e dá abrigo a várias centenas de milhares de cabeças de gado vacum e outras espécies. Tem matas virgens por outro lado e enormes riquezas minerais a serem exploradas.

A zona demarcada, tangenciando duas cidades, tem uma cidade, uma vila e um distrito, respectivamente, Corumbá, Planaltina e Descoberto.

O aspecto geológico do território, referido de passagem por Saint-Hilaire e Castelneau, está cientificamente descrito na monografia de Hussak, apensa ao Relatório Cruls.

Em recente publicação, o dr. Antônio Pimentel, que tantos volumes e escritos esparsos tem produzido sobre o planalto, afirma que (...).

[seguem-se longas descrições da geologia do Retângulo Cruls]

(...) entre as mais ricas do mundo em minerais de ferro de primeira qualidade (...) particularmente a Bandeirinha, perto da Formosa cerca de 15 quilômetros, e onde ainda existem os restos de uma fundição extinta em meado do XIX século, e de que tirei, em 1892, fotografia, depositada na Biblioteca Nacional.

(...)

Sobre o ponto de vista hidrográfico, departamento que deve ser escrupulosamente estudado, informa o monumental relatório que qualquer parte da área escolhida para a sede da capital está apta a fornecer mais de mil litros de água a cada habitante...

O sr. Dorval Porto — Para uma população de quantos habitantes?

O sr. Americano do Brasil — ... em uma população de um milhão de almas. (...)

A hulha branca é abundantíssima na região; a cascata do Paranoá com seus 639 milhões de litros em 24 horas, a do Saia Velha com 85 milhões de litros, o salto de Itiquira com 120 metros de altura, garantem a supremacia do fluido elétrico.

Não bastasse a hulha branca, a hulha verde é freqüente principalmente ao sul da região demarcada, ond ehá declives acentuados.

Em síntese, sob o ponto de vista hidrográfico, o planalto ocupa um lugar especial e único na geografia do Brasil.

Para lembrar e atestar a riqueza da flora planaltina é suficiente reler Saint Hilaire, Pohl, Martius, não existisse o excelente escrito monográfico de Ernesto Ule, botânico da Comissão Cruls.

A bela e rica coletânea esteve exposta aqui no Rio de Janeiro, no edifício dos Telégrafos, depois foi dormir o sono da eternidade no porão do Museu Nacional.

(...)

Sr. presidente, vou adiantando nestas resumidas considerações que já parecem enfadar a Câmara. (Não apoiados). Para terminar direi que da patologia do planalto deu notícia ainda A. Pimentel, do clima o ilustre Glaziou, da zoologia Cavalcanti de Albuquerque, dos vértices e dos arcos de meridiano e paralelo que fixam o planalto, Tasso Fragoso, Celestino de Bastos, Hastimphilo de Moura e outros.

Sr. presidente, foi nessa formosa região que a 7 de setembro o dr. Balduíno de Almeida, diretor muito provecto da Estrada de Ferro de Goiás, comissionado pelo governo, levantou a pedra fundamental da nova capital, no morro do Centenário, da serra da Independência, designações de homenagem.

Não cabe aqui discutir o local, se o mais propício da região para o início da cidade, a futura Brasília de José Bonifácio. Divirjo da escolha, que não aceito como definitiva, pois prefiro o tabuleiro do Descoberto.

Considero, porém, que um grande passo está vencido; a pedra fundamental significa um princípio de ação, um começo de construção. A nova capital está iniciada.

O marco que sustenta a placa de inscrição será de agora em diante um lembrete para os chefes da administração, aos responsáveis pelos destinos do Brasil. Urge continuar, excedendo a pedra fundamental. Tudo depende do governo, do Executivo; o Legislativo já armou o presidente da República dos meios necessários, resta a ação para que a lei não fique como letra morta.

Todos estão de acordo: façamos a mudança urgente da capital da República.

Sr. presidente, resta-me ainda ferir uma questão que está seriamente preocupando a todos: a situação jurídica da zona demarcada. E confesso que neste instante sou o menos competente para tratar da matéria... (Não apoiados). Como qualquer resposta conserva ligação estreita com o projeto que vou submeter à apreciação da Câmara, vejo-me obrigado a invadir seara estranha.

O art. 3º da Constituição da República determina que, no planalto central, pertencerão ao patrimônio federal 14.400 quilômetros quadrados, devendo ser oportunamente demarcados, para o fim do estabelecimento da capital federal.

Pela redação do artigo a zona não está fixada; o planalto central é extenso. A Comissão Cruls, devidamente autorizada, realizou a demarcação em 1893, não tendo sido aliás a mesma reconhecida oficialmente.

Quer dizer: a demarcação ficou como inexistente, pendndo da voz do Congresso, segundo a doutrina do art. 34, nº 13 da Constituição brasileira. Em 1894, se não me engano, surgiu um projeto ordenando escolhad e novo local; outro projeto da mesma época, visando determinar o ponto do início da nova capital na área demarcada, o que importaria na oficialização do trabalho de Luís Cruls, não teve o competente êxito.

O terreno medido em 1893 continuava na situação primitiva.

Quase 30 anos depois, em dias do ano passado, o substitutivo Prudente de Morais, oferecido ao projeto nº 680, marcou taxativamente que a zona demarcada por Luiz Cruls era aquela em que se devia construir o novo Distrito Federal.

Sancionado o projeto em 18 de janeiro deste ano, a área referida transformou-se em Distrito Federal.

Ainda mais: tendo eu apresentado uma emenda ao orçamento do Interior, para o ano vigente, criando quatro escolas primárias no planalto, foi satisfação ver aceita minha proposição. Isso se me afigura um ato de administração.

Não é só: o governo autorizou e já foi executado, nos termos do decreto legislativo nº 4.494, o lançamento da pedra fundamental.

É o começo da construção da nova capital.

Isto tudo vem mostrar que a União está considerando o território como federal.

Eu tenho minhas dúvidas, sr. presidente. Será mesmo federal a área demarcada? Não sei responder e para provocar a manifestação da Comissão de Justiça dirigo à Câmara o projeto que lerei adiante.

Se a zona é federal, não pode ficar em abandono; é rica, é futurosa, deve ser adminsitrada; eu considero essa administração um passo feliz para a mudança definitiva.

Goiás necessita de uma resposta decisiva e se o governo federal não pretende a administração, creio, deve ser assentado um entendimento entre a União e o governo goiano, a fim de que a administração local não sofra soluções de continuidade.

Sr. presidente, eu entendo que administração federal no planalto pressupõe o início da construção da futura capital, para onde, estando tudo preparado, se transportará, no mais breve tempo possível, a capital da República; a ingerência da União no planalto será a título de prestar os preparativos da mudança.

Não cogito, e quero deixar laro, da escrescência de uma administração federal indefinida, sem objetivo prático, dentro do território goiano; ninguém lucraria, perderia meu Estado.

Neste caso, reconhecido o território como federal, opino pelo acordo previsto no art. 2º do projeto, mas esperando também que a União promova a ligação do território aos portos de mar, nos termos do Decreto nº 4.494.

A questão, é preciso compreender, não pode ficar onde está: urge uma deliberação de urgência.

Esta é, e não pode ser senão a mudança da capital, já por meio de capitais estrangeiros que não faltarão ou mesmo nacionais.

Não se afigure a questão financeira das mais difíceis: nesta casa mesmo, um espírito competente, falando com os melhores economistas, já produziu uma página fulgurante a respeito, tão profunda como poucas há sobre a matéria.

Não privarei a atenção da Câmara do prazer de tornar a ouvir as deliciosas e sábias palavras do sr. Bento de Miranda.

« O problema em foco tem aspectos... [até] ... apenas transferência de verbas. »

Palavras de economista e de patriota, devem cair fundo na mente dos que encontram no assunto financeiro um óbice intransponível.

Sr.presidente, a distância do Rio de Janeiro ao planalto é também pergunta freqüente e matéria de combate quando se dicute a transferência da capital.

Não pode prevalecer mais essa objeção: nos dias de hoje, e com a atual locomoção, é longa a viagem de quatro dias.

O planalto está cortado de linhas de automóveis, entroncando uma delas em zona servida por via férrea; é portanto uma zona já civilizada pela gasolina.

Mas a jornada pode ser muito rápida, como demonstra o dr. Luís Cruls, que avalia em 20 horas o tempo do percurso entre o planalto e o Rio de Janeiro, ou sejam 1.200 quilômetros a 60 por hora, velocidade média, muito aquém da que se observa na viação norte-americana.

Sr. presidente, depois destas considerações e guardando outras para tempo oportuno, peço licença à Câmara para ler o projeto de minha autoria e da do deputado maranhense, sr. Rodrigues Machado, meu querido companheiro de jornada em prol do planalto e do Brasil.

Projeto de lei

Seja-me lícito, para finalizar, pedia à Comissão de Legislação e Justiça queira emitir sua opinião o mais urgente possível sobre o projeto, que tenho a honra de submeter à apreciação da Casa.

Sr. presidente, não nos detenhamos criminosamente à margem do caminho, deixando aos vindouros mais uma augusta página de profundo desânimo; a semente está lançada, a messe será abundante, chegando justo no momento propício. Mudemos a capital da República.

A genial opinião de Pitt, aclimatada, tratada e medida pacientemente no cérebro dos estadistas do império e da República, não pode mais ser retardada: urge para benefício da Pátria converter essa aspiração em realidade patriótica.

Na hora presente, estreitados os laços de amizade no continente americano, alicerçado nosso conceito de país civilizado na Europa luminar, neste momento de fraternidade testemunhada ao Brasil pelo mais poderoso império do velho Oriente, eis-nos compelidos a provar que constituímos um povo de ação, capaz de sustentar e cumprir um fervoroso ideal.

Está ereto o primeiro alicerce da magna construção; seguram-no 33 poderosos seixos simbolizando as etapas do regime democrático em que vivemos orgulhosos; não consintamos, sr. presidente, que decorra mais um ano de vida republicana sem a projeção definitiva de todos os pilares do grande sonho do glorioso Andrada, o autor desta famosa peça de arquitetura política.

Que mais falta para o cumprimento da genial aspiração?

Quer o governo, quer o Congresso, quer a imprensa, querem os homens políticos, querem os economistas, querem, enfim, os intelectuais, só restando, sr. presidente, a aplicação do remédio financeiro, fácil de sr encontrado segundo a previsão do nobre deputado sr. Bento Miranda.

Sr. presidente, se há um ano atrás a capital da República se tivesse transportado para o dulcíssimo rincão de minha terra natal, teríamos evitado, sem dúvida, sobejas provas, a sobrecarga concedida aos futuros orçamentos com a adenda ao ordenado do funcionalismo.

Futuros aumentos hão de vir nos futuros dias; procuremos evitá-los levando a capital para a terra farta e fértil. Olhemos para a frente e reflitamos que o abismo financeiro em que se despenha, aceleradamente, a Pátria vale bem o sacrifício de nossas comodidades.

Rumo ao planalto — deve ser agora em diante o grito dos patriotas que só ali poderão, transportada a capital do país, imitando o gesto do imperador audaz, pronunciar o — Independência ou morte — das finanças brasileiras. (Muito bem. O orador é vivamente cumprimentado).

   

A Pedra Fundamental de Brasília

Projeto
Comissão de Constituição
Voto em separado
Comissão de Finanças
Primeira discussão
Decreto nº 4.494
Lançamento
Americano do Brasil propõe administração do novo DF
Projeto de administração
   do futuro Distrito Federal

Americano do Brasil
  defende o projeto

Referências

Brasília nos planos ferroviários (DF)
Ferrovias concedidas do plano de 1890 | EF Tocantins | Cia. Mogiana | Ferrovia Angra-Catalão | EF Goiás | Ferrovia Santos - Brasília
O prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil | A ferrovia da Cia. Paulista | Ferrovias para o Planalto Central | Documentação
A idéia mudancista | Hipólito | Bonifácio | Independência | Império | Varnhagen | República | Cruls | Café-com-leite | Marcha para oeste | Constitucionalismo | Mineiros | Goianos | Projetos de Brasil | Ferrovias para o Planalto Central
 
  
    
 
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