Marcos da "idéia mudancista"
Marcha para oeste:
um endosso ao Estado Novo e um radical projeto de
nação
Trechos de
Marcha para Oeste: um itinerário para o
Estado Novo (1937-1945)
Luiz de Carvalho Cassiano, dissertação de mestrado,
dat., UnB, 2002
A questão da construção do
Estado nacional, mediante a quebra das barreiras oligárquicas
constituídas pelos clãs, os partidos políticos,
é um tema freqüente na produção intelectual
do período. As estratégias para esta tarefa apontam
para o crescimento da área de influência do Estado
sobre a sociedade, abrangendo sugestões, desde a criação
e o fortalecimento de comissões e conselhos técnicos
até a atitude de enfrentar o problema educacional.
O livro de Cassiano Ricardo, Marcha para oeste: a influência
da bandeira na formação social e política do
Brasil, foi publicado em 1940 em uma edição com
ótimo acabamento, em dois volumes, com um total de 585 páginas
e uma dezena de ilustrações de Lívio Abramo.
Essa obra ainda não mereceu uma consideração
mais aprofundada por parte da historiografia brasileira, à
exceção de poucos autores, como [Alcir]
Lenharo [Sacralização
da política, Campinas, Papirus, 1986]. Nesse texto,
[Cassiano Ricardo] apresenta
um projeto de nação construído ao longo de
quase duas décadas e uma proposta de execução
desse projeto, tendo à frente um governo forte, liderado
por um chefe dotado das qualidades semelhantes às dos "cabos
de tropa", comandantes das bandeiras do início da colonização.
A nação proposta por Cassiano Ricardo concretiza-se
no interior, lugar imune às influências negativas do
litoral.
Em Marcha para oeste, o autor apresenta um endosso ao Estado
Novo que era, na época, um regime ainda recente. A defesa
do Estado Novo, de forma mais explícita, apareceu somente
na edição de 1940. A edição de 1942
teve o prefácio e posfácio modificados pelo autor,
conservando trechos de apoio ao governo no corpo do livro. A edição
de 1959 apresenta no prefácio, elaborado pelo autor, apoio
ao desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, procurando aliar
este governo aos propósitos integracionistas de Vargas. No
prefácio da quarta e última edição,
em 1970, Cassiano Ricardo defende a investida do governo militar
na Amazônia, conectando este fato com a "marcha para
oeste" dos anos 40.
Certamente que esta postura conservadora de Cassiano Ricardo foi
um dos motivos que ocasionou o afastamento da intelectualidade com
relação à sua obra. Além das posições
reacionárias, o autor colaborou diretamente no governo ditatorial
de Vargas como censor e diretor responsável pelo Jornal
A Manhã (1941-1945), órgão de propaganda
do governo ligado diretamente à Presidência da República.
Ele também assumiu a chefia do Departamento Político
Cultural da Rádio Nacional, que transmitia crônicas
culturais e de interesse nacional diariamente, freqüentemente
assinadas pelo autor.
Na obra Marcha para oeste, em muitos aspectos absorvidos
pelos fundamentos do Estado Novo, o autor realiza uma síntese
de seu pensamento a respeito das origens do Estado e da nação
brasileira. Ele descreve a saga bandeirante que, penetrando o inóspito
sertão nos séculos XVI e XVII, deu início à
formação social do Brasil, calcada na hierarquia de
raças, no comando forte e na harmonia do convívio
entre as etnias (democracia racial). A história do Brasil
é contada desde as bandeiras, passando pela industrialização
de São Paulo e avançando para a proposta de conquista
do oeste no governo Vargas.
Marcha para oeste, um ensaio sociológico, como especifica
o autor, tem a finalidade de demonstrar que o regime centralizado
de Vargas é a melhor forma de "organização
política" para o Brasil. No entanto, Cassiano Ricardo
faz mais do que defender o Estado Novo. Ele procura, sobretudo,
definir a missão deste "governo forte" e o papel
que os intelectuais devem assumir em seu interior.
(...) Para os críticos, o legado de Cassiano Ricardo é
de um escritor modernista de importância histórica;
para os historiadores ele é simplificado como um ideólogo
estadonovista. (...) As idéias dele, no sentido de que somente
um governo forte conduz à nacionalidade, e sua atuação
no governo Vargas levaram críticos literários e historiadores
a desenhar perfis que o colocaram como um conservador afinado com
o projeto ditatorial.
(...) propõe ao governo disciplinar as construções
intelectuais, atribuindo-lhes um caráter nacionalista (...).
A questão para ele é que o escritor "tem de ser
brasileiro" e guiar os destinos da nacionalidade, como sugere
esse trecho:
Cumprir, aliás, a obrigação
de ser brasileiro é realizar o escritor a primeira condição
para ser universal. Só depois que se nacionaliza, diz Gide,
é que uma literatura toma seu lugar no mundo. Nenhuma violência
cometerá o Estado em exigir da inteligência brasileira
o cumprimento de uma simples obrigação para consigo
mesma. Nesse ponto, como em mais alguns, qualquer restrição
à liberdade intelectual será benéfica.
(...) Logo no início do livro, Cassiano Ricardo estabelece
a dicotomia sertão / litoral que permeará toda a obra.
O confronto entre o sertão, reserva de brasilidade, e o litoral,
portal de entrada das idéias corruptoras da nacionalidade,
vindas principalmente da Europa, liga o pensamento de Cassiano Ricardo
a autores como Alberto Torres e Oliveira Viana.
(...) A mestiçagem, segundo o autor, é um empecilho
para que o comunismo dê certo no Brasil, devido à prevalência
da hierarquia racial. (...):
O branco é o fundador do Estado, pelo seu
espírito de centralismo e comando; os negros e mestiços
formam a massa anônima que obedece ao pulso de ferro do cabo
de tropa, admiravelmente.
(...) As grandes ameaças que pairam sobre a nacionalidade
são o comunismo, o fascismo e o liberalismo. Se estas ideologias
exóticas encontram ressonância entre a massa é
porque as "fronteiras espirituais" não estão
sendo suficientemente defendidas. (...):
O lema do comunismo, "queremos terra"
seria um disparate, dentro de nossa imensidão. A própria
bandeira nos presenteou com verdadeiros luxos de terra. "O
Brasil, a bem dizer, já é de todos". Assim as
reivindicações comunistas — pão, terra, liberdade
— são totalmente destituídas de sentido no Brasil.
(...)
(...) Concedendo liberdade de expressão a todos os elementos
da sociedade, a democracia liberal decreta a sua própria
falência. No lugar da falida democracia liberal, [Cassiano
Ricardo] propõe a democracia biológica, assim explicada
por ele:
(...) E determina a democracia social, pelo encurtamento
de distâncias raciais. E determina a econômica, na classificação
dos mestiços superiores pela posse da terra. É o mestiço
quem vai criar a riqueza conquistando os meios de produção.
(...) A organização sui generis da família
bandeirante, baseada no regime patriarcal, terá a sua contrapartida
na organização do Estado brasileiro. Como na família
formada no planalto, o chefe de Estado deve concentrar todos os
poderes, na medida em que se destaca dos demais pelas suas qualidades
específicas. É nítida a analogia que Cassiano
Ricardo estabelece entre o chefe da família bandeirante e
Vargas, posto que os atributos de qualificação são
os mesmos.
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